Desde que me entendo por gente, sempre quis ser mãe. Assim como com quase todos que aspiram esse sonho, esperei que a vida trouxesse alguém pra compartilhá-lo comigo. Sim, a vida me trouxe alguns relacionamentos, apenas um me pareceu ir nessa direção mas, infelizmente, acabamos seguindo por caminhos diferentes. Os anos passaram e ninguém mais apareceu. Foi então que resolvi seguir sozinha nessa jornada.
Alguns dias antes de viajar com minha mãe, numa aventura da qual falávamos há anos e só recentemente tivemos a oportunidade de concretizá-la, passei pela sétima inseminação. Enquanto estávamos visitando a Big Apple, minha menstruação veio, o que significava que o último procedimento de novo não tinha funcionado. Foi quando resolvi contar pra minha mãe sobre minha decisão e o que estava acontecendo.
A reação foi mais neutra do que um dia poderia imaginar, o que, na verdade, me fez bem, pois eu esperava críticas e mais críticas, mas não, ela se mostrou tranquila e neutra. Talvez tenha entendido o quanto aquilo era importante para mim.
De volta à Montreal, decidi tentar a fertilização in-vitro. No entanto, esse procedimento a província não cobria e precisei recorrer à um emprestimo bancário que daria para pagar a primeira tentativa.
Diferentemente da inseminação, a fertilização in-vitro recorre a medicamentos mais pesados e por tempo mais prolongado. Depois de passados alguns meses para o corpo se recuperar e de refazer todos os exames de sangue e físicos necessários, comecei, novamente, as injeções subcutâneas de estrogênio, dessa vez em doses mais elevadas. Junto com elas, me foi receitado aspirina 80mg diariamente. Os suplementos para melhoria dos óvulos continuavam a serem tomados todos os dias, sem falta.
Algumas semanas e várias injeções depois, chegou o dia da colheita dos óvulos. Nesse dia, precisei ir acompanhada à clínica, pois seria medicada para não sentir dor na hora da retirada e precisaria de ajuda para voltar pra casa. Tirei o dia de folga do trabalho, pois sabia que não teria condições de voltar. Meu pai, que estava de visita em Montreal, me acompanhou e ficou ao meu lado até que me chamaram para a sala de cirurgia. Não adormeci com a medicação como disseram que poderia acontecer. Estive acordada durante todo o procedimento mas não senti dor alguma. Assisti, numa tela dentro da sala cirúrgica, a cada óvulo sendo retirado. Cada um levava consigo um pedacinho de esperança. Ali mesmo, os médicos te dão o resultado da quantidade de óvulos retirados, no meu caso foram 30. Ficaram de telefonar para dizer quantos óvulos estavam maduros e depois quantos haviam sido fertilizados.
No dia seguinte, recebi a ligação da clínica: dos 30 óvulos, 15 estavam maduros mas os "exemplares do doador" não estavam nadando o suficiente e precisavam da minha autorização para fazer a fertilização manualmente num processo chamado ICSI (injeção intracitoplasmática de espermatozóide), obviamente concordei e, ao fim do dia, recebi a notícia de que os 15 haviam sido fertilizados com sucesso. Disseram, também, que ligariam em 5 dias para informar quantos embriões se desenvolveram com sucesso. Ao fim daquela semana veio a notícia de que 10 dos 15 embriões estavam se desenvolvendo muito bem e que seriam congelados. Começava agora a última fase - ou, ao menos, era o que eu esperava.
Durante a semana seguinte à retirada dos óvulos, eu me senti muito mal. Os médicos dizem que você pode voltar às suas atividades normais, com exceção de exercício físico, no dia seguinte à colheita, mas não pude voltar ao trabalho por uma semana. Eu me senti inchada, enjoada, com dores de cabeça, cansada... liguei para a enfermeira da clínica, que me pediu para ir lá e fazer um check-up. Como pode acontecer ao tentar a fertilização in-vitro, meus ovários estavam superestimulados devido à medicação e essa foi a razão pela qual eu estava me sentindo tão doente o tempo todo. No meu caso, eles estavam "levemente superestimulados", ainda bem porque, quando estão "altamente superestimulados", corre-se o risco de morrer!
Um mês depois da retirada e da fertilização dos óvulos, recomeçaram as injeções para preparar o útero para receber o embrião, mas dessa vez com uma novidade: injeções intra-musculares de progesterona que deveriam ser dadas todos os dias no mesmo horário por um mês. E a coragem para me injetar com algo intramuscular? Tive que buscar no super desejo e na, agora quase apagada, esperança. Firme e forte, dotada de um desejo enorme de ser mãe, todos os dias às 20hs, lá ia eu para a frente do espelho calcular o primeiro quadrante superior externo do bumbum, respirar fundo e cravar a injeção.
Chegou o dia da transferência do embrião. Ao contrário da inseminação que é feita numa sala de exames, a transferência acontece na mesma sala cirúrgica onde foram retirados os óvulos. Na televisão que antes via os óvulos sendo retirados, dessa vez me foi apresentado o embrião que seria transferido e pude acompanhar todo o procedimento. Novamente, fiquei deitada por 10 minutos, antes de poder ir embora e seguir normalmente o dia. E, mais uma vez, a espera para saber o resultado, só que dessa vez, a espera seria de uma semana.
Com esse novo procedimento, não consegui ficar tranquila como nos outros. Existia, novamente, uma certa expectativa. Chegado o dia do exame de sangue, a esperança estava lá, escondida, tímida, já cansada de tantas frustrações. Ao final da tarde a notícia: o procedimento não havia dado certo. Dessa vez chorei, acho que mais pelo cansaço de tantos medicamentos, exames, idas e vindas de consultas médicas que pelo sonho não realizado.

Na consulta com a médica, para rever as opções e o caminho que tomaria - se desistiria ou se tentaria novamente - decidi fazer uma última tentativa, pois não teria mais como arcar com os custos. Caso não desse certo, teria que abrir mão de mais esse sonho. Depois de tantos anos e tentativas, combinei com a médica que gostaria de fazer a transferência de dois embriões e não apenas um. As chances de o embrião permanecer e se desenvolver já são tão pequenas, que transferir dois aumentaria um pouquinho a chance de um se alojar e triunfar. Ela concordou, e, dalí alguns meses, recomecei todo o tratamento, mas agora, não havia necessidade de retirada de óvulos já que 9 embriões, da tentativa anterior, ainda estavam congelados.
Dessa vez, pedi dois dias de férias no trabalho. Meu plano era fazer o procedimento e, no dia seguinte, relaxar numa viagem relâmpaga à Nova York onde iria assistir uma artista que adoro, Sasha Velour, em seu show solo: Smoke and Mirrors. E, de quebra, faria uma nova tatuagem em estilo Art Nouveau com uma tatuadora alemã residente na Big Apple.
No dia da transferência, por incrível que pareça, fui sem expectativas. Fui levada à sala de preparação e, alguns minutos depois, estava na sala de cirurgia de touquinha e propé esperando, pacientemente, a médica para o procedimento.
Pela primeira vez desde o início dessa saga, além da consulta com a minha médica, o exame de ultrassom para ver se o útero estava "no ponto" e a transferência foram realizados por mulheres. Me senti protegida, amparada, compreendida e abençoada. Existe um certo vínculo, uma conexão não explícita entre nós mulheres, algo que nunca senti antes e que não sei explicar direito, mas é como se existisse uma cumplicidade por sabermos exatamente o que significa para nós essa busca, esse desejo e o quanto apenas nós entendemos realmente, lá no fundo, os nossos corpos. Não sei explicar, mas a sensação de ter sido cuidada por mulheres do início ao fim dessa última transferência foi mágica.
Na sala cirúrgica, aquela mesma televisãozinha que acompanhou a retirada dos meus óvulos e a transferência mal sucedida do embrião anterior agora me mostrava dois embriõezinhos. Lembro de achar interessante que, apesar de ambos serem embriões de 5 dias vindos da mesma colheita, um era bem branquinho e o outro meio cinzento. Lembro também de pensar "oi queridos, eu sou a mamãe de vocês".
Procedimento realizado, fui pra casa em paz, tranquila. Algo dentro de mim parecia ter sossegado e tudo que me passava pela cabeça era "se der certo, deu, senão, então não era pra ser". Cheguei em casa ansiosa pela viagem do dia seguinte.
Fui para Nova York sem pensar em transferências, tratamentos, frustrações, nada que remetesse aos vários anos de tentativas. Só pensava que iria aproveitar aqueles três dias antes de voltar para a realidade. Dito e feito. Cheguei na cidade que nunca dorme e fui direto ao estúdio encontrar a tatuadora. 5 horas e meia depois, saía de lá feliz e carregando comigo uma nova arte. Ansiava pela performance que veria no dia seguinte.
Acordei com uma fome lancinante, coisa que nunca me acontece ao acordar. Em geral, levo umas duas horas depois de acordada para sentir fome. Saí para tomar café da manhã, passeei pela cidade, voltei para descansar antes do show. Me arrumei e fui assistir Sasha Velour.
Smoke and Mirrors foi uma obra prima a qual tive a oportunidade e a felicidade de assistir. Sasha nos faz rir, chorar, pensar, refletir... Há anos não assistia algo tão bom! Valeu muito a pena a corrida de três dias à New York, New York. Saí do teatro faminta novamente. Devorei uma pizza grande, sozinha, no quarto do hotel em pouquíssimos minutos. Caí dura na cama, e no dia seguinte, dei uma última volta pela cidade antes de voltar para casa.
De volta à Montreal, só precisava esperar mais 3 dias para fazer o exame de sangue e saber se, dessa vez, a transferência tinha sido bem sucedida. Continuei como estava durante a viagem: em paz, tranquila, sem ansiedade, sem expectativa e esfomeada.
Feito o exame de sangue, o final do dia reservou a surpresa da ligação da clínica: teste positivo. Me segurei na comemoração, pois deveria retornar à clínica no dia seguinte para realizar um novo teste e verificar se os hormônios haviam duplicado em volume nas 24 horas que se seguiram.
Cheguei na clínica com aquela pontinha de esperança que insiste em aparecer mesmo quando não a queremos por perto. Exame feito, horas de espera, ligação da enfermeira me parabenizando, pois estava grávida. Agora era esperar 6 semanas para fazer o ultrassom de viabilidade.
(Continua no próximo capítulo...)