sexta-feira, 11 de setembro de 2015

A vida é um ciclo

Meu avô já dizia que a vida é um ciclo, sem nada antes ou depois, apenas o aqui e o agora. Ele era uma pessoa muito prática e sábia. Talvez ele estivesse certo ou, talvez, estivesse enganado e nós nos veremos novamente em algum momento. Eu acredito nisso.

Ontem, foi a vez da vovó ir ao encontro daqueles que a amam mas que já estão do outro lado do caminho.

Minha avó foi uma mulher incrível. Desafiou as convenções da época de sua juventude indo jogar vôlei escondida do meu avô. Mas, foi também um forte exemplo de sua geração. Amou suas duas filhas com todo seu coração.  Lutou pra dar a melhor educação pra elas. Amou suas quatro netas com a mesma força e devoção. Foi bisavó com a mesma dedicação, mesmo de longe. Cuidou de todos ao seu redor. Sempre que alguém vinha pedir ajuda, lá estava ela de braços (e portas) abertos. Amor não faltava. Nunca faltou. Era possível enxergar nos olhos dela.

Minha avó era cheirosa. Saía do banho e a casa inteira ficava perfumada. Sua pele segurava o perfume de forma que nunca vi em ninguém. E seu cheirinho delicioso pairava no ar por horas.

Adorava cuidar do jardim, tricotava os casacos mais lindos, fazia as cucas mais gostosas.

Sempre que íamos passar o verão com ela, éramos recebidas com o sorriso mais verdadeiro e uma casa cheia de delícias: barrinhas de chocolate, massas, bolachinhas, lasagnas, cassatas, tortas de bolachinha, e um freezer repleto de sorvetes, tudo feito por ela. Suas delícias eram tão disputadas que, na hora da sobremesa, dava até briga pelo tamanho das fatias. Meu avô se irritava e dizia para "trazer a trena", assim não teria diferença entre os pedaços.

No inverno, quando estávamos só nós duas e já abafadinhas nas nossas camas, era comum ela me perguntar com um olhar sapeca: "que tal um cremezinho?", e descia as escadas correndo pra preparar a delícia na cozinha gelada.

O olhar sapeca estava sempre presente quando o assunto eram sobremesas ou presentes que estava preparando para alguém. Assim como morder a ponta da língua. Marcas registradas da vovó.

Não gostava de melancias. Cresceu ouvindo que melancia mata e por isso não comia. Mesmo depois de anos casada com um alemão que adorava melancias, e de ver todas nós mandando ver em fatias da fruta no quintal durante as quentes tardes de verão, continuava não querendo nem experimentar. Também não gostava de sorvete derretido. Mal começava a derreter e ela já dizia que estava mole.

Amava café com leite e pão. Se deleitava com uma fatia de pão com mel e manteiga e uma xícara de café com leite tinindo de quente. Sim, tinha que estar bem quente. Era uma formiguinha: amava doces, tortas, barras de chocolate (as quais comia roendo como um coelhinho).

Nas manhãs frias de inverno, abria as janelas e deixava o ar gelado entrar para arejar a casa. Colocava travesseiros e cobertores no sol e descia para preparar o café da manhã. Só depois de tudo pronto é que vinha me acordar. Quando eu falava que ela não precisava me mimar desse jeito, ela respondia que vovós são feitas pra mimar os netos e dizia "eu sou tua mamãe de açúcar".

Quando, aos meus quatorze anos, voltei de viagem trazendo na mala um cachorrinho de pelúcia vestindo um macacão, ela gostou tanto do bichinho que acabei dando de presente pra ela. Até então, nunca tinha visto ela se interessar por bichos de pelúcia. Muitos anos mais tarde, ela iria ter vários.

Estava sempre cantando. Uma de suas maiores paixões: a música. Tinha uma voz linda que agraciava todos que tiveram o privilégio de escutá-la. Amava Pavarotti e se emocionava com suas interpretações.

Adorava os personagens italianos interpretados por Raul Cortez.

No fim da vida teve suas preciosas lembranças roubadas, retiradas dela contra sua vontade. Voltou a ser criança: adorava bonecas e bichinhos de pelúcia. Continuou a se deleitar com sobremesas e café com leite por algum tempo. Sua paixão, a música, foi a última coisa a ir embora. Não sabia mais as letras, mas por algum tempo ainda reconhecia as melodias. Aos poucos tudo foi partindo. Não merecia isso. Foi carinhosa até o fim, mesmo em seu mundo sem memórias. Mas, esquecendo-se de nós ou não, eu sei muito bem quem ela era e continuará sendo no meu coração. Merecia todo carinho, amor e respeito com que tratou todos que cruzaram seu caminho.

Agora está livre. Livre das amarras do tempo, do esquecimento, da dor. Pode, finalmente, descansar dos anos "em branco".

Aqui ficam as lições de vida, de bondade, de amor. Com ela aprendi a apreciar os pequenos detalhes, a delicadezas da natureza, a ver felicidade em pequenas coisas. Aprendi o verdadeiro significado de alegria todo dia, de apoio e respeito ao próximo.

Durante sua passagem por este mundo, ela o fez melhor, mais bonito, mais aconchegante. O ciclo se fechou. E que ciclo maravilhoso.

Obrigada, vovó, por todo amor que nos dedicou. Por todo carinho que sempre mostrou. Por todo cuidado que sempre teve com quem amava. Teu amor fez de todos nós, pessoas melhores.

Agora voa, voa livre e feliz. Reencontra teu alemão, teus irmãos e amigos, teus pais. Tu estarás sempre presente em nossos corações

Fica em paz, mamãe de açúcar, fica em paz.


"Não chore sobre o meu túmulo,
Eu não estou lá,
Eu não durmo.
Eu sou os mil ventos que sopram,
Eu sou a neve que cai suavemente,
Eu sou o sol brilhando nos grãos maduros,
Eu sou a suave chuva de outono.
Quando acordares no silêncio da manhã,
Eu sou o estímulo inspirador
Dos pássaros tranquilos voando em círculos.
Eu sou o suave brilho das estrelas à noite.
Não chore sobre o meu túmulo.
Eu não estou ali.
Eu não morri."

(Mary Elizabeth Frye)
tradução livre pela autora


terça-feira, 17 de março de 2015

Um belo lugarzinho na ilha

 


     Nesses últimos dias de inverno tenho passeado bastante pelo bairro que chamo de meu desde que vim morar em Montreal. É um dos maiores bairros da cidade e, como acontece na maioria das metrópoles, foi uma cidade independente até ser anexado à Montreal. Passeando pelas ruas e descobrindo lindas relíquias de tempos já idos, resolvi pesquisar a história desse lugar, mais conhecido pelo estádio olímpico que por suas belezas, chamado Hochelaga-Maisonneuve. Talvez vocês também achem interessante.

     Em 1664, a congregação de São Sulpício se tornou dona desse terreno que hoje corresponde a Hochelaga-Maisonneuve. Eles dividiram o terreno em faixas perpendiculares ao rio e estabeleceram fazendas.

     Devido às dificuldades de navegação do rio Saint Laurent naquela época, as mercadorias dos navios eram desembarcadas mais ao norte e trazidas para a cidade pelo Chemin du Roy (hoje essa rua atravessa a cidade de norte a sul e se chama Rue Notre-Dame). Foi nesse "caminho do rei" que as primeiras casas à beira do rio foram construídas.

Antiga casa do banqueiro Maurice Cuvillier
     No início do século XIX, várias reformas foram feitas em Montreal, entre elas, melhoria do sistema de trens, de navegação, do porto e pavimentação da rua Notre-Dame para retardar a erosão causada pelas enchentes. A vila de Hochelaga também cresceu e, em 1870, foi oficialmente fundada. Os fazendeiros venderam suas terras e famílias de classe-média alta se mudaram para a região.

Georges Moore Memorial Home (asilo)

     A vila se expandiu rapidamente e os cofres públicos foram esvaziados devido às necessidades de construção de infraestrutura básica, como esgotos e aquedutos, assim, a idéia de anexar Hochelaga à cidade de Montreal, foi rapidamente aceita. Em 1883, Hochelaga já era parte de Montreal.

     Quando Hochelaga foi anexada à Montreal, um grupo de donos de terras, cujos nomes são ainda hoje bem conhecidos por aqui, resolveu criar uma cidade modelo baseada no movimento City Beautiful que se espalhava pelo país. Esse movimento promovia a criação planejada de beleza cívica através da harmonia arquitetônica, projeto unificado e variedade visual. Seguindo esse modelo, a cidade de Maisonneuve foi criada. O terreno foi dividido em retângulos onde seus criadores planejavam construir fábricas e grandes edifícios institucionais.

Prefeitura de Maisonneuve
     Entre 1896 e 1915, Maisonneuve cresceu rapidamente, sua política de isenção de impostos atraiu muitas fábricas, o que, por sua vez, atraiu muitos trabalhadores. O empresário e agricultor Charles-Théodore Viau sonhava em criar uma cidade modelo em suas terras (Viauville) e exigiu que os compradores de seus lotes construíssem casas com fachadas de pedra.

Banho público Maisonneuve
     A Grande Depressão (1929 - 1939) pesou sobre as fábricas e os trabalhadores do distrito, obrigando várias famílias a recorrer à assistência social. Projetos de obras públicas, incluindo a criação do Parque Morgan, visavam a criação de trabalho para os desempregados. Durante a Segunda Guerra Mundial, esses projetos foram suspensos e substituídos pela indústria de defesa, o que resultou na recuperação econômica da década de 1960.

Convento Hochelaga
     A construção de grandes infraestruturas de transporte, como a Highway 25, em 1967, e a rodovia leste-oeste demoliu cerca de 2.000 casas e edifícios institucionais, incluindo o impressionante convento de Hochelaga.
Muitas fábricas se mudaram para o leste, na região de Mercier (um antigo aglomerado das vilas de Beau-Rivage, Longue-Pointe e Tétreaultville, anexado à Montreal em 1910). Essas mudanças, combinadas com a mudança de capital e de produção para Toronto, prejudicaram a economia e a vitalidade do bairro. Muitas fábricas e residentes se mudaram da área.

Mercado Maisonneuve
     A chegada das Olimpíadas de 1976, transformou a paisagem arquitetônica do bairro, através da construção de alguns edifícios impressionantes. Durante os anos 1980 e 1990, o Mercado Maisonneuve, que estava fechado desde 1962, foi reaberto, e a primeira casa de cultura de Montreal (a Maison de la Culture) foi aberta onde antes funcionou a antiga prefeitura de Maisonneuve. Novos setores residenciais foram criados na extremidade norte do bairro.

American Can Co.
     Hoje, fábricas abrem espaço para uma indústria de serviços composta por pequenas e médias empresas. Hochelaga-Maisonneuve mantém uma ativa vida comunitária com seus cafés e bistrôs e organizações comunitárias e patrimoniais. A reabilitação da antiga fábrica American Can, várias melhorias e a revitalização gradual das ruas comerciais, incluindo a Promenades Sainte-Catherine e Rue Ontário, são outros sinais da renovação do bairro. Atualmente, a população de Hochelaga-Maisonneuve é composta, em sua maioria, de idosos e não têm tantas crianças quanto outros bairros de Montreal.
Localização do bairro em Montreal
   
A área de Hochelaga-Maisonneuve é delimitada a leste e oeste pela linha férrea paralela à Moreau e Vimont Streets e se estende da rua Sherbrooke, ao norte, à rua Notre-Dame Street, ao sul. Hochelaga-Maisonneuve foi integrado a outro bairro, Mercier e hoje, o nome completo do bairro é Mercier Hochelaga-Maisonneuve.

Maisonneuve, fundador de Montreal
Mercier refere-se ao aglomerado de vilas como dito anteriormente; Hochelaga é uma palavra indígena iroquois que significa "dique do castor" ou "lago do castor"; e Maisonneuve é uma homenagem ao fundador de Montreal, Paul de Chomedey, sieur de Maisonneuve, militar francês que fundou Montreal na, então, Nova França em 1642.
     Muitas das preciosidades arquitetônicas do bairro continuam de pé e em pleno funcionamento, Vale a pena visitar.



Avenida Morgan com Mercado Público Maisonneuve e torre do Estádio Olímpico ao fundo - inverno 2015




Fontes:
Héritage Montreal
The Canadian Encyclopedia
Musée McCord

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

A saga dos "momentos Bridget Jones"

O Diário de Bridget Jones - Universal Pictures, 2001


 "Por que é que existem tantas mulheres solteiras na faixa dos 30 hoje em dia, Bridget?"


     Ultimamente tenho vivido muitos "momentos Bridget Jones", com a diferença de que já sou mais velha do que ela no primeiro livro, o que só faz com que esses momentos sejam ainda mais estranhos. Um dia destes, alguém que conheci recentemente (e com quem nunca tive qualquer conversa sobre a minha vida privada), de repente perguntou: "Então, a razão pela qual você está solteira é porque você só conheceu pessoas ruins em sua vida?". Vamos ser claros: a pergunta foi baseada exclusivamente no fato de eu ter 37 anos de idade, ser solteira e sem filhos (porque na maneira de pensar dessa pessoa, de alguma forma, ter filhos significa que você encontrou alguém "bom" em algum momento. Aham ... .). Sem dar muita consideração à resposta - já que fui pega de surpresa e não podia acreditar nos meus ouvidos - respondi imediatamente "não, não é isso". A pergunta era séria?
     Os dias se passaram e eu fiquei pensando por que as pessoas assumem que se você é solteiro é porque você só conheceu idiotas? Isso me fez pensar sobre as poucas pessoas na vida com quem tive um relacionamento e fico feliz em dizer que tenho sido, basicamente, "livre de idiotas". Não tive muitos relacionamentos: apenas dois vida curta e dois que duraram alguns anos. É claro que todos tiveram seus altos e baixos, mas também deixaram boas lembranças, mesmo o mais difícil deles teve bons momentos e esses são os que valem a pena lembrar.
     Todo mundo tem suas próprias questões, eu certamente tenho as minhas. Relacionamentos têm seus próprios problemas, e é natural tentar resolvê-los. Alguns são mais fáceis, outros mais difíceis; ao longo do tempo, uns tornam-se mais fáceis, outros mais complicados, é como a vida é. Eu nunca iria culpar a outra pessoa por estar solteira nos meus "30 e muitos".
     Eu tive dois relacionamentos maravilhosos, se nenhum deles progrediu o suficiente e acabou em casamento é porque não era o momento certo, mas nunca foi porque a outra pessoa era ruim. Relacionamentos são vias de duas mãos e posso dizer que tive a sorte de conhecer pessoas incríveis e inesquecíveis que estarão para sempre no meu coração.
     Então, a minha resposta para essa estranha pergunta é: eu estou solteira porque eu estou. A vida nem sempre acontece de acordo com nossos planos, na maioria das vezes é exatamente o oposto, mas isso não significa que eu não estou feliz. Minha felicidade não está condicionada a estar em um relacionamento, mas a estar em paz com quem eu sou. E, se algum dia, aparecer alguém com quem a relação leve ao casamento e à família, sim, vai ser bom, mas não vai ser "o" motivo da minha felicidade,vai ser, simplesmente, uma adição ao que já é bom.

Bridget Jones: No Limite da Razão - Universal Pictures, 2004

domingo, 4 de janeiro de 2015

As emoções dos idiomas

     Esses últimos dias, além de procurar emprego e enviar currículos, tenho me focado em melhorar os idiomas que aprendi até hoje. Cada dia é dedicado a um deles e todos passam pelas mesmas fases: exercícios de gramática e vocabulário, leituras, e assistir programas para (re)acostumar os ouvidos.
     Algumas pessoas associam países à comida, à música, à arte. Mas eu também associo com sensações. É o som, a melodia da língua que me faz associá-la a uma sensação diferente. É como se cada idioma tivesse uma característica própria e esta estivesse relacionada à alguma emoção. Independente do que se esteja dizendo. Ok, vamos ver se consigo me explicar melhor. Por exemplo:

quando se fala inglês americano, a conversa soa "legal" (cool).



Já o inglês britânico, não interessa se o diálogo se trata de uma briga, sempre soa extremamente educado.






   

     Francês, que me desculpem os amigos francófonos, por mais que alguém esteja sendo verdadeiramente simpático, sempre soa um pouco prepotente.

Italiano é, para mim, a linguagem do romance. Não interessa se duas pessoas estão brigando, pra mim a melodia é sempre romântica, e olha que já tive minha oportunidade de ser grossa nessa língua.






     E, alemão... bom, alemão acho que não sou a única que pensa assim, soa um pouco duro. Convenhamos, quando se quer reclamar de algo a reclamação parece ter mais força em alemão do que em qualquer outra língua ocidental. Mas, sinceramente, eu adoro. Adoro o som, a dificuldade da pronúncia e as lembranças boas que me traz, apesar da dificuldade da gramática.



     Já me perguntaram qual associação faço com a língua portuguesa. Bom, talvez por ser minha língua materna, o português do Brasil não tem esse efeito sobre mim, e o português de Portugual ainda não consegui definir muito bem.
     E pra vocês? Como seria?